Jose Lima
Funes, o Memorioso (no Brasil) ou Funes ou a memória (na tradução portuguesa de José Colaço Barreiros) – no original Funes el memorioso – é um conto de Jorge Luis Borges, pertencente ao livro Ficciones (Ficções), de 1944, que narra a história de um rapaz que tinha uma memória prodigiosa, mas que, sem conseguir articulá-la com sua pouca inteligência, era tido como curiosidade no vilarejo em que vivia. Funes era uma verdadeira enciclopédia, pois lembrava-se de incontáveis textos, apesar de não saber elaborar estes conhecimentos.
“Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.”
“Suspeito entretanto, que não era muito capaz de pensar.
Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.’’
Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.’’
Funes o Memorioso, Ficções, Jorge Luis Borges, 1944.
A história de Irineu Funes é simples, porém desconcertante. Personagem da ficção de Borges, Funes teria tido uma vida comum, sem mais nem menos, como qualquer cristão. Um acidente, um tombo para ser mais preciso, mudou definitivamente o rumo da vida desse peão de uma estância no sul do Uruguai. A capacidade de tudo lembrar ou, em outras palavras, a incapacidade de esquecer tornou-se a “doença’ de Funes, apelidado de “o memorioso”. Nada, nenhum minucioso detalhe, escapava da implacável memória de Funes. “Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernando em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro às vésperas da batalha do Quebracho.” A memória de Funes não tinha limites!
Ora, o que tem a ver a história de Funes, passada no final do século 19, com os tempos de hoje? Tempos complexos, onde, sufocados pelo excesso de informação, estamos sempre a esquecer o que vimos, ouvimos ou pensamos minutos atrás. Seríamos uma espécie de anti-Funes? Aliás, Funes dizia que antes do acidente “havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo.”
Seria Funes, o memorioso, um símbolo para esta era da informação, onde quase tudo se encontra indefinidamente registrado nas memórias dos computadores? Claramente, faltam-nos metáforas para compreender este mundo novo, onde a Internet, o onipresente computador e as informações ocupam a cena, juntamente com o homem, seus velhos sonhos e mazelas. A tecnologia não se explica por si só. É criada, oferece funcionalidades, ocupa lugar e pronto. Suas consequências e sua relação com o homem são percebidas somente com o passar do tempo. As metáforas e as significações para este mundo novo devem ser buscadas na literatura, que vaga à vontade entre o real e o imaginário. O fantástico universo da literatura de Borges serve à invenção de modelos apropriados para o entendimento da complexidade da vida do nosso tempo.
Em seu livro, “As Confissões”, Santo Agostinho refletiu sobre o arcabouço da memória. “Mas eis-me diante dos campos , dos vastos palácios da memória, onde estão os tesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda espécie. Lá estão guardados todos nossos pensamentos, quer aumentando, quer diminuindo, quer modificando de qualquer modo as aquisições de nossos sentidos, e tudo que aí depositamos ou reservamos, se ainda não foi sepultado ou absorvido pelo esquecimento.” A história de Funes passou-se numa época onde as informações percebidas vinham apenas de cenários naturais e das interações do homem com a natureza, sem a presença da tecnologia, que permeia a vida contemporânea.
“Naquele tempo, não havia cinemas ou fonógrafos…’’ Esse pequeno detalhe da história de Funes embute uma questão central. O excesso de informação do mundo atual nos oprime e confunde. TV, rádio, jornais, Internet e o ritmo frenético da vida urbana se combinam numa tensa alquimia, que torna tudo descontínuo e fragmentado. A incessante mudança de contextos torna a realidade das informações e imagens praticamente inassimilável. Em frações de segundos, a TV passa das cenas de um desastre ecológico de proporções globais para um programa de auditório, onde a tolice e o ridículo disputam a fama instantânea. Funes era “o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato.’’ No mundo atual a quantidade de informação excede nossa capacidade de percepção e absorção. O excesso de tudo e a onipresença da mídia nos faz sentir um pouco como Funes.
Estudos recentes revelam a existência de mais de 2 bilhões de páginas de informação na Internet (ou World Wide Web), que continua crescendo vertiginosamente, com a inclusão diária de milhões de novas páginas. O que significa esse universo de páginas? Apenas informação? Conhecimento? Sabedoria? Funes dizia: “Mais recordações tenho eu sozinho que as que tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo.” E apesar da ilimitada capacidade de memória, Funes era incapaz de “idéias gerais’’, era incapaz de compreender o mundo. “Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversas formas; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente).’’ Funes simplesmente não sabia o que fazer com tanta informação! “Suspeito entretanto, que (Funes) não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.’’
Na Internet, há de tudo. De obras clássicas da literatura a irrelevantes anotações pessoais, da arte a pornografia, de informações sobre direitos humanos até manuais de terrorismo. As páginas de informação na Internet não passam de um vasto museu de tudo, cuja melhor descrição aparece na secura dos versos de João Cabral de Melo Neto:
“ESTE MUSEU DE TUDO É MUSEUCOMO QUALQUER OUTRO REUNIDO;COMO MUSEU, TANTO PODE SERCAIXÃO DE LIXO, OU ARQUIVO.”
De certa forma, a Internet se assemelha a Funes. É uma infindável memória, onde se coloca de tudo. Não se filtra nada; não há seleção da qualidade da informação e nem se discrimina sua origem. “Minha memória, senhor, é como um despejadouro de lixos”, comentou Funes. A cultura eletrônica baseada na Internet e nos computadores padece do mal de Funes. Antes da Internet, as bibliotecas, os editores e os críticos exerciam para a sociedade essa função de selecionar a informação. Criavam-se pontos de referência para a sociedade. Na cultura eletrônica, vale tudo. Uma infindável memória, onde não se separa o joio do trigo, está cada vez mais se tornando a memória coletiva da sociedade. No entanto, não existem ainda tecnologias para selecionar somente a informação que interessa e “esquecer’’ o resto. E aí, mais uma vez, há o choque entre o novo e o antigo. A memória do homem é naturalmente seletiva, vale dizer, o oposto da saturação informativa da Internet e dos tempos modernos. Uma saturação que nos remete novamente ao personagem Funes, que por tudo recordar, era incapaz de pensar.
A ficção de Borges revela ainda outros traços escondidos da cultura eletrônica; a perda da memória histórica. “No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.’’ A Internet e suas incontáveis páginas de informação concentram-se nos anos recentes. É como se de imediato o tempo tivesse sido aniquilado, deixando-nos numa espécie de presente estendido. Na Internet, encontra-se, por exemplo, todo e qualquer tipo de informação e dados sobre a Copa do Mundo de 1998. Mas, por outro lado, informações mais antigas sobre assuntos menos populares são escassas e de difícil acesso. Por exemplo, a busca de dados sobre a situação da mulher no Brasil no início do século 20 exige um longo trabalho de garimpagem. Há uma excessiva concentração num passado muito recente e em temas excessivamente da moda, distorcendo a visão do mundo para aqueles que usam a Internet como fonte de referências ou aprendizado. Em um plano mais geral, o problema deriva-se da confusão entre o virtual e o real, que começa a permear a sociedade contemporânea.
Virgílio Fernandes Almeida, Ph.D. professor titular do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais. O texto acima foi originalmente
publicado no caderno Pensar do jornal O Estado de Minas.
publicado no caderno Pensar do jornal O Estado de Minas.
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